Jack, meu Deus!
- Cláudia Goulart Alves de Mello
- 1 de set. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 10 de dez. de 2024
O que faço eu na vida, sem você? ("que não me ensinou a te esquecer...")
Cada um que parte leva um pouco da minha alma, e você levou um pedaço enorme! Nem sei por onde começar...
Você veio para nossas vidas de um jeito torto, resgatado de um canil, com o palato aberto, sem poder beber água, fratura no quadril, tatuagem nas orelhas. Veterinários, exames, cirurgias, pós-operatórios, tantos remédios... Você mal andava, era trôpego, não descia degraus, mas aprendeu rápido. E, quando aprendeu, subiu na mesa da sala, pulou e quebrou a pata! Se lembra do gesso? Fazia um toc-toc infernal, no piso da casa! Sempre desastrado...
Quando chegou, Natália morava no Rio de Janeiro, fazia internato em neurocirurgia com um bambambã da área, ela tinha se mudado há pouco, montamos um apartamento para ela em Niterói, perto da Universidade. Ela viu você pela primeira vez por Skype!

Quando começou a falar, com aquela voz de lorde inglês, você me chamou de Laura e disse que era Deus. Eu achei melhor não contrariar...
É bem verdade que, muitas vezes, você se parecia com o Deus do Velho Testamento, um tanto prepotente, egóico e rancoroso, não é mesmo? E ainda tinha aquela coisa de “deserdar Jesus”, que eu nunca engoli muito bem.
Jack falava que Jesus havia se perdido em sua missão, que “passou a andar em más companhias, deixou o cabelo crescer e só queria saber dos amigos, festa e vinho”! Ele dizia ser até bem tolerante (podia ser só uma fase), mas - quando o filho começou com aquela conversa de que as pessoas deveriam “deixar pai e mãe para trás”, não prestou, Jack considerou imperdoável. Dali em diante, seu único filho passou a ser o Antônio, que ele carinhosamente chamava de Júnior e se gabava da semelhança entre eles dois.

De vez em quando, Ele ainda comentava (ressentido) sobre as centenas de igrejas fundadas pelo Cristo. Alta traição! Também se arrependia da Bíblia, costumava dizer que tudo era mal interpretado, que o ser humano não sabia ler. Não admitia que a Festa do Natal envolvesse Jesus e Noel, tudo deveria ser em honra Dele, o Deus Único, Onipotente e Verdadeiro! Ao longo dos anos, convivemos com esse seu olhar sobre a vida, tão peculiar quanto Divino.
Ele se metia nas conversas de todo mundo, ouvia nossos planos e desejos, e logo dizia:
– “Laura, você quer isso? Eu concedo! Está concedido, ouviu hen?”
Essa coisa de Laura foi outro mistério, eu nunca consegui saber de onde veio o meu novo nome, mas o fato é que me tornei Laura, a mãe de Deus! E eu aceitei.
Ríamos muito do Jack e dos seus delírios, Ele era muito inteligente e bem humorado, mas ego puro, deliciosamente infantil. E, como toda criança, estava sempre contente, trazia alegria para qualquer atividade, qualquer ambiente. Dava apelidos a tudo e a todos, tínhamos o amigo "branquinho", a avó "Laurão", as veterinárias "Cheirosinhas"... Coisas do arco-da-velha!
Por causa da infância difícil, ficando preso numa jaula horrorosa por mais de um ano, sempre fizemos questão de leva-lo para passear e viajar. Adorava ir a Cafés, amava praias... Era uma flecha na areia!
Certa vez, na Bahia, em Arraial D´Ajuda, estávamos sentados bebendo nossos drinks ao Sol, na mais santa-paz, quando surge o Jack correndo... Na boca, uma lagosta inteira, que se movia para cima e para baixo (em câmara lenta), na medida em ele corria. Deus deslizava gritando: - “Corre Laura, corre!” Ele havia roubado o almoço dos vizinhos...
Passamos a viajar de carro, porque não queríamos coloca-lo no compartimento de bagagem do avião, cães com mais de 10 quilos não podiam viajar na cabine, então íamos por terra, mesmo quando era longe. Uma vez, chegando na Península de Maraú, também na Bahia, ele empacou e se recusou a ir para Taipú de Fora, ficou gritando (sem parar) que não ia colocar coisa alguma de fora (muito menos o taipú...)! Foi a maior confusão!
Em suas viagens, que (além de nós) também contavam com Antônio e Nélson como "passageiros", ele fez muitos amigos, que acompanharam notícias suas pelo o resto da vida.
Adorava tecnologia e produtos de luxo, a loja favorita era a Burberry, de onde Ele cismou que queria uma echarpe, e isso foi assunto por anos! Outro desejo de consumo era o IPhone, queria um só para si, assim como um blog e redes sociais (só rindo... e quem não quer?). Gostava de ir ao shopping e ao outlet e fazia sucesso por onde quer que passasse: parava, conversava, cumprimentava a todos. Era dono de um carrinho de passeio, para distâncias maiores (assim não se cansava muito nem sobrecarregava o quadril). De lá, ele via o mundo se desenrolar divertidamente à sua frente.
Também tinha um alter-ego um tanto complicado, de nome Paçoca, que era tão ladrão, tão ladrão, mas tão ladrão, que o apelido era "deputado"! Roubava tudo que fosse comestível e, como era alto, alcançava mesas, bancadas de cozinha e armários. Era um problema! (Vide a lagosta na praia...rsrsrs).
Com o passar dos anos, o Deputado Paçoca já aparecia cada vez menos... E, no mais, a vida era suave: cochilos, banhos de sol, convívio com os irmãos, muito colo e biscoitos. E ele estava lá, sempre feliz – era o meu Príncipe!
Há cerca de três anos, teve um sarcoma no focinho e fez duas cirurgias. Depois da última, alguns meses após, começou com um quadro crônico de sinusite. Foram muitos antibióticos, corticoides, antialérgicos, nebulizações, veterinários dedicados e determinados... mas a situação persistia. Chegou a ter hérnias cervicais de tanto espirrar. No final, descobrimos que era um tumor na hipófise ("a glândula mestra"), meu docinho estava morrendo.
Jack era muito fofoqueiro, queria sempre saber de tudo e exclamava o tempo todo:
- Eu, Deus! Eu, Deus! – Foi mesmo? Tinha hora que dava nos nervos! Eu não tinha espaço, era o dia inteiro, ele estava sempre junto e sempre me empurrando com o focinho e a cabeça, para eu não tirar as mãos dele. Controlador, como todo Deus! Mas também dava conta de tudo, se nascia uma florzinha nova no jardim, vinha logo me mostrar: - "Olha que belezinha, Laura, já tinha visto?" Além disso, era minha sombra, tudo o que eu fazia em casa tinha ele ao lado, olhando, com aquela carinha inteligente, dando seus palpites... Tinha até uma cama extra no meu escritório, para aguardar enquanto eu trabalhava. Deitadinho lá, entre cochilos, tagarelava sobre tudo.
Depois que minha filha morreu, Jack me manteve viva por um ano e três meses, quando finalmente partiu, no último dia 29 de agosto, ao meio dia. No final, implorei a Deus (portanto a Ele) que fosse em paz e que nós não precisássemos fazer a eutanásia. Foi concedido.
Alguém me disse que Ele havia virado estrelinha, um anjinho no céu... Mal sabia a pessoa que Jack já era o dono de todas as estrelas e anjos!
Deus me ensinou mais como Jack do que pude aprender nos meus muitos anos estudando com freiras. Ele me salvou, em vários sentidos e dimensões. Por uma década, foi abrindo espaço com seu focinho longo e enchendo nossas vidas de luz.
Agora, é só esperar: em algum momento, estarei com ele em meus braços outra vez. Enquanto isso, vamos levando... seguindo e cuidando dos filhos que ainda nos restam (são dez - oito cães e dois gatos). Também vamos continuar pedindo, não é mesmo? Porque Ele certamente concederá!
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