Nosso Pé de Ipê
- Cláudia Goulart Alves de Mello
- 22 de abr.
- 5 min de leitura
Atualizado: 24 de abr.
Quando Natália morreu, sabíamos que ela queria ser cremada. Pensamos em jogar suas cinzas no mar da Bahia, que ela tanto amava. Venderíamos nossa casa e nos mudaríamos para a praia, como já era nosso projeto, há muito tempo. Mas, com o passar dos meses, vimos que não tínhamos energia para uma mudança tão grande, a Bahia precisava esperar.
Assim, nós nos mudamos para a Casa Aroeira, na região rural do Jardim Botânico. Aqui, plantamos um ipê-amarelo, árvore que ela adorava (e queria até tatuar em suas costas, mas não teve tempo). Logo, ficou claro que o ipê seria o canteiro para suas cinzas.
Plantamos a árvore e esperamos por meses, até que vingasse e se restabelecesse do estresse do plantio. Fizemos um círculo de seixos no meio do gramado e colocamos o ipê no centro. Embaixo da árvore, um banco grande, dois pequenos e um braseiro.
Na semana em que completaria um ano de sua morte, preparamos tudo para colocar suas cinzas na terra.
Havia papéis, memórias, textos, bilhetes... tantas notas que ela havia deixado, e que eram dela, pessoais. Então, preparamos uma fogueira, para que tudo fosse transmutado pelo fogo e seguisse "per fume" (pela fumaça) rumo ao Grande Cosmos.
A noite estava escura e a lua, em sua fase minguante. Queimamos mirra, incenso, benjoim, sândalo e lavanda. Os aromas subiam, enquanto minhas lágrimas escorriam para o chão, junto com ela.
Adubamos uma terra preta, que parecia a própria substância da vida. Misturamos suas cinzas e, com muito amor, colocamos tudo aos pés do ipê. Cercamos a árvore com enormes cristais de quartzo e, lá, também plantamos o umbigo dela, que eu havia guardado por todos aqueles anos.
Da Terra para a terra. Estava consumado.
Era uma noite fria. O vento gelado envolvia minha cabeça raspada, mas eu não quis lenços nem gorros. Aquela sensação também era necessária.
Molhamos o chão. Ouvimos mantras, olhamos as chamas até que se apagassem e deixassem enormes brasas incandescentes. Eu me senti fora do mundo e da vida, mas – ao mesmo tempo – estranhamente presente e concentrada em cada movimento, em cada respiração.
Nossos fiéis escudeiros, nove cães e dois gatos, estavam conosco, ao lado do fogo e aos pés do ipê, por todo o tempo.
No dia seguinte, acordei me sentindo amortecida, daquele jeito que ficamos depois de um grande trauma. Meio sem crer, mas sabendo de tudo. E tocamos a vida, sobrevivendo mais do que propriamente vivendo.
Aos pés do ipê, plantamos lavanda francesa e uma roseira amarela. E, desde então, tudo está em flor.
A lavanda prosperou, se encheu de flores, abelhas e borboletas. As rosas, valentes, sobrevivem às formigas cortadeiras e continuam florindo, sem descanso. Mas o ipê, esse é algo de outro mundo!
Ele cresceu de braços abertos e estendidos para o céu, na forma de Algiz, a runa da proteção. Nele, surgiu uma única flor, poucos dias depois do plantio. Parecia um milagre improvável.
Considerada uma árvore de crescimento lento, essa espécie de ipê deveria florir a partir de um ano e não em poucos dias. A florada continuou, ao longo de 2023 (poucas, mas permanentes). Ano passado, entre agosto e dezembro, houve uma floração especial e, depois, ele se manteve sempre com algumas flores.
Este ano, a árvore floresceu (plena) no início de março e novamente (com uma florada maior e mais intensa), no começo de abril. Muitas flores! Pesquisei, perguntei a amigos que entendem de plantas, mas ninguém conseguia explicar, simplesmente não deveria ser assim. Mas é, foi, está sendo...
Numa das primeiras vezes, tirei várias fotos pela janela do meu quarto. Lá, estava o ipê e o jardim. Na foto, surge um arco íris sobre tudo. O que eu posso dizer? Estávamos em plena seca, a umidade do ar (naqueles dias) havia chegado a 9%. Não havia partículas de água suspensas que pudessem formar um arco íris nem algo que provocasse reflexos de luz com aquele resultado, a janela estava aberta, não havia vidro e era uma câmera digital.
As fotos falam por si. Elas aqueceram minha alma e coração, me envolveram num abraço surpreendente, chegaram como um sopro morno sobre meu rosto, estalando um beijo suave.
Eu (distraidamente) coloquei outros troços no ipê: um sino de vento, lanternas que se acendem à noite (presente de uma amiga querida, que as trouxe da Alemanha), uma “mesinha” onde eu empilho pedras (um tipo meditação que gosto de fazer), além de bandeirinhas tibetanas de orações. Diz-se que, quando o vento sopra e move as bandeiras, as orações se propagam pelo universo e alcançam nossos seres amados...
Sei que é meio “over”, pode até ter ficado um pouco “poluído”, mas é assim que eu sou.
Fotografei, desenhei, pintei, escrevi sobre o ipê e suas flores mágicas, mandei a IA fazer desenhos do jardim. Fiz tudo para entender. No começo, guardava as flores, secava, colocava em potes e envelopes. Depois, ficou impossível, chegaram a centenas. Hoje, apenas aceito e contemplo, permitindo que essa beleza (impregnada de Deus) me invada e faça parte da minha vida.
Fizemos também uma placa. Eu me lembrava de ter lido isso, há muito tempo, numa revista qualquer. Não sei quem é o autor nem as palavras exatas, mas era um diálogo com o seguinte conteúdo:
- Me encontra no ipê mais florido!
- Mas não é tempo de ipê...
- Então me encontra quando for o tempo!
E, algum tempo depois, nós nos demos conta de que aquele era um ipê que estava sempre florido – fora de época, sem data, sem estação. O tempo sempre foi (a toda hora) o do encontro!
Esses "pequenos milagres" chegaram até nós, sem que houvéssemos buscado significados ou alimentado expectativas, simplesmente tomaram seu curso e se manifestaram na vida diária, inesperados, nos lembrando de que tudo (na vida) ocorre num fluxo contínuo, vivo, inteligente, pulsando - existindo e cessando a sua existência, continuamente.
Assim têm sido os nossos dias: um momento depois do outro, focados em aprender o que pudermos, enquanto houver tempo, enquanto chegarem as flores... Vivendo de pequenos encantos e encantamentos, voltados ou conectados (todos) aos que já nos esperam do lado de lá.
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*Ipê-amarelo: espécie de árvore do gênero Handroanthus. No Brasil, é também conhecida como ipê-amarelo-flor-de-algodão, ipê-amarelo-da-mata, ipê-tabaco, piúva-amaerla, tamurá-tuíra, entre outros nomes.
A palavra ipê vem do tupi, tem origem na contração entre yb e pé, e significa "pau cascudo", em referência à dureza e resistência de sua madeira. A árvore varia de porte médio à grande, podendo atingir de 15 a 30 metros de altura.
Seu tronco é fissurado, formando finas placas que se soltam em lascas. As flores são de cor amarelo-dourado e se formam em cachos. Suas vagens são bipartidas e têm cerca de 35 cm, com coloração marrom-escura, textura rugosa e cobertas por pelos, dentro delas estão sementes aladas, de germinação simples. As folhas variam de um verde escuro a intenso, com bordas suavemente serrilhadas.
As flores, de grande beleza, atraem insetos e vertebrados, como abelhas, borboletas e pássaros, especialmente beija-flores, que têm papel fundamental em sua polinização. As floradas ocorrem após a queda das folhas, no inverno, no período mais seco do ano, geralmente entre o final de julho e setembro. Podem dar frutos, na forma de vagens, que ficam maduros por volta de quatro meses após a floração.
Existem mais de 100 espécies de ipês-amarelos, que ocorrem do sudoeste dos Estados Unidos até o norte da Argentina e Chile, sendo típicos do bioma da Mata Atlântica brasileira.
Um Projeto de Lei de 1961 propôs o pau-brasil e o ipê-amarelo, respectivamente, como a árvore e a flor nacionais, embora apenas o pau-brasil tenha recebido a designação, por Lei.
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