Essa Parte da Vida
- Cláudia Goulart Alves de Mello
- 2 de dez. de 2024
- 9 min de leitura
Atualizado: 10 de dez. de 2024
Passei muitos anos num mesmo emprego (com ótimas condições e ganhando bem), até sair por motivos políticos. Depois disso, fui me ajustar para voltar ao mercado de trabalho como autônoma, mas não foi fácil. Surgiam bons projetos (alguns bem pagos), mas sem a constância necessária, e os altos-e-baixos permaneceram.
Até hoje, as coisas estão assim: às vezes tem, às vezes não tem.
O que eu não havia olhado de frente foram as razões mais importantes a serem observadas: é claro que existem problemas de mercado (coisa e tal), mas o fato é que eu envelheci.
Eu continuo preparada, tenho experiência acumulada, que se traduz num ótimo repertório (mais importante até do que minha formação acadêmica, que também é de qualidade), mas existem muitos jovens na praça, com acesso a melhores tecnologias (mais ágeis), que entregam um bom resultado num tempo curto, por um preço menor.
Não fiquei totalmente para trás no tempo, eu me atualizei (e muito), mas a demanda, nesta época de coisas rápidas e mais superficiais, não é pelos preciosismos aos quais eu sempre estive acostumada. Tudo pode ser mais simples e menos bem acabado, se for eficaz. Na maioria das vezes, não se perde tempo com requintes, sofisticações e acabamento, e este era um dos meus diferenciais. Para mim, Deus sempre morou nos detalhes (o diabo também), e o meu trabalho ficava mais caro por causa disso.
Ok. Então, é só mudar. Passar por cima desse “jeito de fazer as coisas” e "entregar" como todo mundo faz! ...Eu até tentei (simplifiquei, reduzi preços, modernizei), mas quem disse?! A verdade é que eu envelheci (e tudo mudou mesmo, sob vários aspectos), é um troço complexo, que a gente vive sem olhar de frente, sem entender as implicações mais profundas. Daí, as coisas começam a travar e a gente não sabe o que houve.
O que, efetivamente, nós compreendemos do evelhecer (esse processo confuso e inevitável, que chega para todos os que estão vivos)? Questão nada simples, não é? E que estamos sempre ignorando...
Às vezes, eu penso na vida como um joguinho de varetas. Alguém tem isso na memória? A gente joga as varetas e depois vai recolhendo, sem mexer nas outras. Cada cor vale um número de pontos, a preta é a mais valiosa, depois acho que vêm as vermelhas... (já não me lembro). Mas é como se, ao longo da infância e adolescência, as varetas se espalhassem e nós seguíssemos o caminho aprendendo a juntá-las, do jeito certo.
Nas varetas, encontramos a bagunça dos traumas, aprendizados equivocados, crenças desnecessárias, dogmas, mentiras e ameaças (do tipo “não faz, que Deus tá vendo"…).
Primeiro, acreditamos (piamente) em tudo. Recebemos informações, emoções e comportamentos dos pais, que por sua vez receberam dos nossos avós (num sistema sem fim de antepassados, que se expande no tempo e nem existe mais no nosso espaço presente).
Todo esse aprendizado nos chega doente e contaminado de erros (sobre erros sobre erros sobre erros), e cabe a nós desenrolar a encrenca. Assim, vamos catando as varetas (procurando não derrubar as outras), tentando entender quanto vale cada uma e qual é o seu real significado, mas leva tempo para pegar o jeito.
Noutro dia, conversando com um amigo, falávamos de como a primeira parte da vida (até uns setenta anos de idade... rsrsrs) deveria ser apenas “treino”. Só a partir de então, é que poderia começar o "jogo", propriamente dito. Mas não é assim que funciona, o nosso tempo aqui é curto (um piscar de olhos), e quando nos damos conta, tudo já ficou para trás.
Passamos grande parte da nossa história anestesiados e inconscientes. A anestesia é um comportamento infantil (reforçado pelo nosso instinto de sobrevivência), que aprendemos logo que chegamos à vida: se há desconforto, procuramos algo para fazer passar (rápido).
Se “está doendo”, nós nos distraímos, comemos, bebemos, nos drogamos, fazemos sexo, consumimos, jogamos... e normalmente estamos dispostos à qualquer negócio, para acabar com a dor. A dor psíquica (então) é tão insuportável, que muitos adolescentes (e até adultos) se cortam, porque a dor física é mais fácil de suportar. Nós fugimos de ambas.
A hipótese de deixar doer, para ver o que acontece, é impensável (pelo menos por muitos e muitos anos). A ordem de infância é para ser feliz, buscar alegria no que quer que seja. E nós a cumprimos à risca!
Acontece que a anestesia tem seu preço, e custa caro. Cada vez precisamos de mais (é como qualquer vício) e, quando passa, o buraco é maior, mais escuro e mais profundo, simplesmente impossível de se preencher com comida, distração ou drogas.
Essa verdadeira incapacidade de lidar com dor, desconforto e sofrimento é a essência do que há de infantil em nós. Tudo muda o tempo todo, nada permanece como é. Portanto, coisas ruins também passam (assim como as boas) e é preciso estar aberto ao fluxo da vida e aguentar o tranco. Mas este é um entendimento maduro. A criança (que está no comando) é apegada e tem medo, ela resiste.
A resistência é um ponto crucial: a realidade tem que caber no nosso “querer infantil” e, quando qualquer discrepância se apresenta, resistimos, sentimos medo, temos raiva e entramos em pânico, é o fim do mundo! Reagimos violentamente, até em situações pequenas e desimportantes, basta não ser como queríamos que fosse. A frustração é insuportável.
E, enquanto essa dinâmica (que afeta tudo em nossas vidas) se desenvolve, vamos vivendo (aos socos e solavancos), tendo que lidar com nossas emoções, traumas e dificuldades do dia-a-dia. Precisamos encarar a vida que acontece e a vida que criamos, tendo uma capacidade de enfrentamento extremamente reduzida, porque sentimos medo e perseguimos o prazer o tempo todo (e somos escravos dessa perseguição).
E qual é a solução? Não faço a menor ideia (só estou "pensando alto" mesmo). Mas, até que nos últimos anos, tenho feito alguns experimentos. Na verdade, a maioria das práticas nem é minha, vêm de seres despertos, de grandes buscadores, que já percorreram o caminho e que trabalharam muito para chegar a essas conclusões. Eu estou só dando uma espiadinha “sobre esses ombros de gigantes…”
Uma dessas coisas, que tem me ajudado bastante, é tentar não fugir da dor. O caminho para sair do sofrimento é através dele (e não dando a volta nele!).
Primeiro, reconhecemos que algo está doendo e aceitamos isso (aceitar é o passo inicial para atravessar). Em seguida, vamos agindo (a ação nos tira do desespero), damos os passos que se apresentarem no momento, e vamos observando a dor se dissolver e algo novo surgir em seu lugar. Do outro lado, saímos transformados, mais fortes, seguros e conscientes. Seja qual for o cenário, a vida estará melhor!
Interessante, não é? Mas o ego (que é “alguém” que precisamos compreender, e rápido!) já vai nos dizer que isso é impossível, que fugir da dor é questão de sobrevivência, é instintivo, e que essa estratégia não pode dar certo.
O ego e a criança interna nos governam (um pela mente, na esfera dos pensamentos e suas dinâmicas, e o outro pelo inconsciente). É como disse Jung: enquanto não trouxermos o inconsciente à luz da consciência, tudo de ruim acontecerá e nós chamaremos de destino.
Impossível ou não, o fato é que as soluções mais duradouras em minha vida (que não se evaporam do nada) são resultados desse processo de desapego, de não-resistência ao que se apresenta. Quanto menos resisto, menos dói (menos tenho medo), mais rápido tudo se transforma e passa. Por outro lado, quanto mais resisto, mais dói (mais tenho medo e sinto pânico) e mais demora a passar.
Nas minhas vivências têm sido assim, quanto mais me anestesio, maior fica o buraco e de mais anestesia eu necessito. Esse buraco a ser preenchido, pelo menos em mim, só se satisfaz com uma experiência de ordem espiritual: criar, trabalhar (produzindo), me conectar ao outro e à natureza (amar, ajudar, cuidar, proteger), viver coisas que me elevem (música, arte, histórias, filmes, livros, conversas), aprender, meditar, silenciar, entrar em contato com o divino (seja como for) – é disso que se trata, só esse tipo de coisa traz plenitude.
As tentativas ordinárias de bem-estar e satisfação (comer, beber, sonhar, comprar, jogar, vencer, manipular...) nunca preenchem, nunca são o suficiente, logo nos sentimos frustrados novamente (e vazios, e famintos!), e tudo recomeça – novo objetivo, com nova busca de algo para nos confortar momentaneamente. É uma agonia eterna.
As soluções jamais estão fora de nós. A saída é sempre para dentro (também aprendi isso de outros pensadores mais experientes).
Voltando ao jogo de varetas, é como se (desde o início) tudo tivesse sido bagunçado deliberadamente e o nosso propósito esteja em descobrir os erros, encontrar as verdades e consertar o cenário (e a nós mesmos) para, assim, aprender e evoluir. A vida é um joguinho nível hard de se jogar, não é moleza! (Mas, se fosse fácil, acho que não teria graça, não é mesmo?)
Acontece que a gente vai vivendo (bem distraídos, achando que temos muito tempo), aprendendo (ou não) e, de repente, bate um vento e muda tudo, entramos numa nova etapa. Na primeira parte, a nossa palavra era conquistar, estávamos em franca expansão (estudos, trabalho, carreira, família, amigos... o mundo!). Agora, nós começamos a encolher.
O envelhecimento é talvez o período mais importante e complicado da vida. Já não temos tempo a perder, já erramos muito e estragamos oportunidades de crescimento. Agora, é tudo ou nada, há pouco tempo para resolver a história, e – neste pouco tempo – começamos a lidar com o tal movimento inverso: tudo encolhe, é a construção de uma trajetória de perdas.
Perdemos o sono, a saúde, a agilidade, a visão, a audição, a vitalidade. A energia não é mais a mesma, os reflexos perdem velocidade, entramos numa gestação esquisita, que (no final) vai nos tirar da vida num parto às avessas. Estamos no caminho do morrer. Não que todos não estejam nesta trilha, desde sempre. Mas, agora, é oficial. É daqui para a morte!
Começamos a perder de um tudo: pessoas (que morrem às pencas), amigos (que, por um mundo de razões, a vida afasta), empregos (trabalho, carreira), deixamos de ser respeitados por quem somos para receber o respeito devido aos mais velhos (o que se traduz em tolerância, quando temos sorte).
Tudo é novo, espantoso e (às vezes) violento. Começamos a ver um mundo que não existia, com menos saúde, mais obstáculos e insegurança. Deixamos de confiar na nossa força e capacidade.
O pensar é mais lento e as memórias se fragmentam. Que medo da demência! (e horror do desamparo...). Jovens (em geral, não todos) nos “acusam” de envelhecer e esperam que nos portemos como se não tivéssemos envelhecido (risos). É confuso, é difícil. Como Rita Lee disse, “envelhecer não é pra maricas!”
Ficamos mais frágeis e emotivos (pelo menos, alguns de nós). Olha que brincadeira mais besta é a vida: um jogo complicado, e quando começamos a pegar o jeito, tudo vira, novas regras, novos objetivos, parece uma piada de mau gosto.
Na filosofia grega, o tempo (Cronos) só passa para quem cresce. E, eu confesso que já vi muitos velhos que continuam infantis (e isso não é um elogio). São pessoas para as quais o tempo, com seu sentido de melhoria, crescimento e aprendizado, jamais chegou. São criaturas que sempre me espantam e também comovem.
De qualquer modo, não temos saída, é envelhecer ou morrer! Por isso, é importante reconhecer os encantos desse processo, que está longe de ser totalmente ruim. É nesta fase da vida, em que perdemos tanto, que (paradoxalmente) nós nos tornamos mais capazes de compreender o mundo (e de nos compreender e aceitar). Passamos a sorrir sorrisos verdadeiramente iluminados pela compaixão (por nós e pelos outros). E há uma imensa força nisso.
Não é tempo de se abaixar a cabeça ou se deixar intimidar por maus-tratos e descaso. Olhem à diante, enfrentem a vida com dignidade. Exijam seus direitos, façam-se respeitar e respeitem-se a si mesmos! Existe força, existe vida, somos seres humanos completos e competentes. Atenção, companheiros idosos, avante!
Ser infantil (a essa altura) é derrota, mas ser criança não. Nossas crianças internas já podem estar mais dóceis e tranquilas, sem medos, sem bichos-papões, livres para relaxar, sorrir, observar e se maravilhar com as belezas da vida. E é um luxo trazê-las junto da gente, podendo olhar as pequenas e grandes coisas do mundo como se fosse a primeira vez, mas também orientados pela consciência, que já foi expandida com o caminhar.
Essa parte da vida é a parte que nos interessa, e a única sobre a qual podemos agir. Com nosso aprendizado, pouca anestesia e menos resistência, nós podemos alcançar até as varetas mais difíceis, mesmo que as mãos estejam trêmulas! Confiem e deixem o passado para trás: tragam consigo somente as memórias que couberem na alma, mas sem apego, de bolsos vazios e mente limpa, com serenidade. Respirem e mantenham os corações abertos!
Eu percebi que não posso e não devo competir com as coisas que a juventude traz, mas posso criar novidades em minha vida. Se, por um lado, é difícil fazer meu trabalho com outros métodos, por outro, posso fazer coisas novas.
Compreender os problemas não traz soluções mágicas e imediatas, é verdade, mas nos capacita a agir melhor, a construir soluções que (aos poucos) vão se tornando mais fáceis e rápidas. É fundamental. Além disso, a graça está em aprender, até o último instante. É bom não ter tantas certezas.
O resto é vida que segue, e ela vem com suas dificuldades de sempre (alegrias e sofrimentos), ora suave ora violenta, mas não para! E (por isso) nós também não podemos parar, porque vida é movimento e viver é mudar, crescer, transformar, amar e morrer.
Vamos em frente, que a estrada é curta! Vamos rir dos tropeços, achar graça das nossas dificuldades. Vamos usar menos filtros e menos maquiagem, vamos olhar para as rugas como testemunhas do nosso viver! É importante não se levar tão à sério, e é possível que a leveza seja a melhor ferramenta para transitarmos, com passos de valsa, por essa nova etapa do viver.
Um brinde ao momento: - Gracias a la vida, que nos ha dado tanto!
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